Reportagem especial

Por que 2018 é um ano de avanços para Vila Belga

Pâmela Rubin Matge


Em meio ao colorido de sua arquitetura e aos eventos culturais que tem sediado, há moradores tão entusiastas que chegam a dizer que a Vila Belga poderá fazer de Santa Maria a "Paraty Gaúcha", comparando o local à histórica cidade de 50 mil habitantes do Estado do Rio de Janeiro, que sedia a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip).

- É só ter visão e investir - diz um aposentado que não quis se identificar, temendo ser rotulado como "um sonhador demasiado".

Sonho ou ilusão, o fato é que o núcleo habitacional tem motivos como nunca para se desenvolver e virar uma referência ainda maior.

É que o ano de 2018 foi de conquistas. Depois de três anos e oito meses, o tradicional Brique da Vila Belga passou a a ter edições noturnas, com programação ampliada e diversidade de expositores. O novo horário segue até o final do ano. Em outubro, o evento foi um dos vencedores do Prêmio Culturas Populares 2018, promovido pelo Ministério da Cultura (MinC), sendo uma das 500 iniciativas premiadas com R$ 20 mil. Há pouco mais de uma semana, outra boa notícia: o Brique foi um dos 40 projetos aprovados pela Lei de Incentivo à Cultura de Santa Maria (LIC-SM) para 2019. O valor aprovado foi de R$ 60 mil.

Em novembro, um empresário - cujo nome não foi divulgado - custeou a mão de obra para recuperação das históricas pedras da esquina das ruas André Marques e Ernesto Beck.

E, para quem acha que já sobram motivos para comemorar, dá para aguardar e intensificar o fechamento de um ano de ouro.

A Lei 6.057, de 27 de abril de 2016, que transformou a Vila Belga e parte do centro da cidade em um Polo Histórico, Cultural, Turístico, Gastronômico e de Lazer, pode ser ampliada. Isso significa, que se o projeto de Lei 8.789/2018 for aprovado pela Câmara de Vereadores até o dia 13 de dezembro, quando, completam-se 30 dias que foi enviado ao Legislativo, os ventos do desenvolvimento podem soprar mais forte em direção à vila ferroviária e entorno.

Herança ferroviária

Considerada patrimônio histórico-cultural do município, a Vila Belga foi planejada durante o período de 1901 a 1903 e inaugurada, em 1907, pelo engenheiro belga Gustavo Wauthier. As casas serviam de moradia para os funcionários da Compagnie Auxiliaire de Chemins de Fer au Brésil, a companhia belga que tinha a concessão para exploração da ferrovia. O núcleo habitacional possui os mesmos moldes das casas operárias da Bélgica e França. As edificações ficam situadas em quatro ruas principais - Manoel Ribas, Ernesto Beck, Dr. Wauthier e André Marques - e cinco quadras, configurando 40 casas geminadas, ou seja, duas casas unidas pela mesma parede.

Em 1988, a Vila Belga recebeu o Tombamento Municipal e, em 2000, Estadual.

VILA BELGA COMEMORA 110 ANOS

 PARA INCENTIVAR QUEM CHEGA E JÁ CONTRIBUI COM O DESENVOLVIMENTO

Lei que institui o Polo de Incentivo ao Turismo Histórico, Cultural, Turístico, Gastronômico e de Lazer tem como objetivos incentivar empreendimentos que visem à preservação histórica e cultural, valorização de bens patrimoniais e arquitetônicos e de animação turística, de convívio social, de entretenimento e de lazer da Vila Belga, a lei é extensiva à Avenida Rio Branco, à Gare e ao Centro Histórico de Santa Maria.

- O principal objetivo é a revitalização da Vila Belga, mas é preciso incluir a revitalização da Rio Branco, por onde se passa para chegar ali assim como a Gare e todo esse coração ferroviário, todo esse ecossistema. Essa lei também vale para diferenciarmos um conceito: crescimento econômico e desenvolvimento econômico, que é a nossa proposta, e significa inclusão, formalização e melhor qualidade de vida para agentes da comunidade. Como projeto virando realidade, a transformação é total - enfatiza o secretário de Desenvolvimento Econômico, Turismo e Inovação, Ewerton Falk.

Na prática, novos setores poderão investir na região, como o de hotelaria, que a antiga legislação não contemplava. Além disso, uma área maior da cidade poderá ser beneficiadA.

A sugestão de moradores em permitir que bares funcionem também poderá ser viabilizada. Conforme Falk, desde que sejam feitos estudos de impacto de vizinhança previamente e que novos agentes invistam naquele ambiente, para além do poder público.

Um dos pontos altos da mudança na legislação é com relação à isenção de impostos.

- Todo negócio tem cinco anos de isenção de impostos. Agora, seguimos mantendo os cinco anos para novos negócios, mas dando também três anos para os já instalados a partir da aprovação da lei - explica Falk.

Os incentivos contemplam isenções como a da taxa do licenciamento para execução de obras; do Imposto Sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbano (IPTU), desde que o imóvel esteja registrado no nome da empresa solicitante, ou que a mesma apresente contrato de locação ou sublocação e atestado de anuência do proprietário do imóvel; das taxas para obtenção da licença prévia, da taxa de alvará de localização, da redução da alíquota do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN) até o percentual mínimo de 2% previsto em legislação superior, etc. A relação total de incentivos, bem como de estabelecimentos comerciais e de serviços, pode ser consultada no site do legislativo: camara-sm.rs.gov.br.

AS TRÊS MUDANÇAS

  • Ampliação do raio de ação geográfico para se formar um ecossistema sustentável na região
  • Ampliação de atividades econômicas baseadas na economia criativa em situações tecnológicas e inovadoras
  • Incentivo fiscal às empresas já instaladas

REGIÃO AMPLIADA
Área de abrangência dos imóveis com as atividades descritas na lei e que fizerem frente para as ruas abaixo: 

  • Rua André Marques, do nº 167 até a esquina com a Rua Manoel Ribas
  • Rua Wauthier, do nº 151 até a esquina com a Rua Manoel Ribas 
  • Rua Manoel Ribas, em sua totalidade, entre Rua André Marques e Av. Rio Branco
  • Rua Ernesto Beck, da esquina com a Rua André Marques até os nº 2.045 (lado esquerdo) e 1.990 (lado direito) 
  • Avenida Rio Branco, desde a esquina com a Rua Manoel Ribas até a esquina com a Rua Venâncio Aires 

BRIQUE DE REPERCUSSÃO NACIONAL

Destacado no Prêmio Culturas Populares 2018 promovido pelo Ministério da Cultura (MinC) e um dos 60 projetos da Lei de Incentivo à Cultura de Santa Maria (LIC-SM), aprovando R$ 60 mil, o Brique da Vila Belga ganhou dimensões além fronteiras. A ampliação da lei potencializa as atividades que já estão em curso.

- Materializamos um desejo da cidade. A lei, sem dúvida, é importante para o desenvolvimento de Santa Maria. O que falta agora é o interesse do poder público para dialogar, ampliarmos essas discussões, para que todos entendam a importância da lei e se abra a perspectiva de um desenvolvimento compartilhado com os moradores e com os segmentos artísticos. A cidade tem, agora, a oportunidade de criar um desenvolvimento endógeno - destaca Schirlei Stock, 38 anos, empreendedora cultural do Brique e doutoranda em Administração na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

A empreendedora diz que o evento representa uma expressão cultural que acolhe todas as linguagens artísticas, artesanato, gastronomia local e integra a paisagem cultural com as manifestações criativas que lá ocorrem, partindo do conceito de cidade criativa, gerando valor econômico a partir de valores simbólicos.

Quanto à visibilidade nacional, Schirlei diz que a repercussão se deve ao alinhamento da economia da cultura.

- Geramos valor e valorização para a comunidade artística sem cobrar nada do público, por isso, é um espaço inclusivo. O prêmio será usado para garantir a estrutura da associação. Não temos nem sequer computador próprio, tudo é feito à base da colaboração. A LIC vem na tentativa de dar sustentabilidade a esse movimento. Precisamos avançar. Esperamos que o reconhecimento do Ministério da Cultura nos ajude a sensibilizar a comunidade local na fase de captação da LIC-SM - diz Shirlei.

CIDADES CRIATIVAS
De acordo com Schirlei Stock, são várias as cidades criativas que estão na lista da Unesco e que promovem a inovação e a criatividade como impulsionadores de um desenvolvimento urbano sustentável e inclusivo. Cada uma delas com sua vocação criativa, seja para as artes, gastronomia ou folclore.

- Do Brasil, Paraty, João Pessoa e Brasília estão na lista. O Brique da Vila Belga, por ser um movimento popular, se inspira também na Feira de San Telmo, em Buenos Aires. Este ano, buscamos inspiração na Feira do Largo da Ordem, em Curitiba. Estive na Secretaria de Cultura de lá, trocando experiências e buscando entender como é feita a gestão da feira, que já tem 55 anos e é patrimônio cultural da cidade.

Para Kalu Flores, um dos idealizadores e também expositor da iniciativa do Brique fomenta o conceito de Cidade Criativa e já é um ponto de turismo e desenvolvimento da cidade.

 - A partir do surgimento do Brique, muitos empreendimentos de cultura surgiram na Vila Belga. Temos dois ateliês e uma galeria de arte, uma loja de artesanato, três antiquários, um ateliê de alta costura e outros empreendimentos em construção, tais como um centro cultural, uma petisqueria e o Mercado Público com a acesso pela Vila - informa Kalu.

"ONDE QUER QUE EU VÁ, CONTO QUE MORO EM UM PATRIMÔNIO"

Eles viajam, enchem os olhos de beleza em cada cidade que passam, mas, quando retornam a Santa Maria, reafirmam o orgulho de morarem em um dos núcleos habitacionais mais ricos em história, cultura e beleza do país.

Já passa de três décadas que a dona casa Clara Dalva Burdinhão de Matos, 66 anos, e o aposentado Pedro Corrêa de Matos, 67, vivem na Vila Belga.

Há poucos dias, o casal retornou de um passeio por vários municípios de Minas Gerais.

- Onde quer que eu vá, conto que moro em um patrimônio. Lá, em Tiradentes, São João Del Rei e outros lugares de Minas, perguntavam de onde eu era e eu começava a contar. E, realmente, amo morar aqui. Somos uma grande família. Além do brique, teria de ter lugar que funcione todos os dias com venda de artesanatos e lembranças da Vila Belga. Às vezes, alguém de outra cidade passa por aqui, quer levar um presentinho e nem sempre acha - diz Clara.

Corrêa avalia que, a exemplo de outras cidades, é preciso valorizar o que é histórico:

 - Aquele vagão que revitalizaram lá na Gare está depredado, é um desrespeito. Não vimos isso em outras cidades.

O aposentado observa que atrair novos tipos de investimentos na região pode gerar mais renda e popularidade:

- Deveriam permitir a abertura de botequinhos e que pudessem ser colocadas cadeiras e mesinhas na frente dos bares, tudo sob fiscalização, é claro. Iria lotar. Também seria bom termos um hotel ou umas pousadas. Lá, em Minas, tem de ver como funciona e como são valorizados. E nos finais de semana, o preço chega a dobrar de tanta procura.

"ADORO E QUERO MAIS BARULHO. ISSO É VIDA!"

O desejo da aposentada Eva Machado Moura, 67 anos, é pintar a casa número 2.117, da Rua Ernesto Beck, como a maioria das outras 84. Ocorre, que há cerca de cinco anos, quando um projeto viabilizou a pintura das casas, inclusive, com a doação das tintas, a moradora, que até hoje faz tratamento de saúde, não pôde executá-lo. É que a contrapartida de cada morador, segundo Eva, era fazer os consertos da fachada da residência.

Ainda que o colorido não esteja estampado naquelas paredes, o amor que tem em viver naquelas bandas e as boas lembranças de outros tempos não desbotaram:

- Eu gasto com doença. Sou viúva, moro sozinha e, infelizmente, não sobra para arrumar. Mas morar aqui é muito bom. Vi as crianças crescerem. Aqui, as pessoas se visitam, todo mundo se conhece. Gostaria que investissem mais nessa região histórica. Em dias de brique, é bonito. Adoro e quero mais barulho. Isso é vida - afirma a moradora.

"MAIS SEGURANÇA AO ANDAR PELA VILA"
Dormir, acordar ou andar pelas ruas da Vila Belga com a certeza de que a própria casa não será arrombada ou que não sofrerá assalto é uma realidade distante de quem vive por lá. Nas vias, há postes sem luminárias e outros estão depredados. Em geral, os moradores relatam que há muito a ser investido no que diz respeito à presença mais efetiva de guardas, policiais ou mesmo de melhores condições de infraestrutura, bem como de iluminação adequada, que inibam ações criminosas. Porém, a insegurança já não causa mais tanta preocupação.

- Colocaram algumas câmeras e não temos mais ouvido falar em tanto assalto. Está tudo tranquilo - observa a moradora Clara Dalva Burguinhão de Matos, 66 anos.

Em julho deste ano, um dos crimes que causou repercussão foi quando uma equipe de jornalismo da RBS TV de Santa Maria virou alvo de um assaltante em plena manhã. Os profissionais trabalhavam na apuração de uma reportagem sobre furtos de postes e fios de energia elétrica na região.

Segundo um levantamento da Brigada Militar (BM), em 2018, foram registradas, na Vila Belga e nas adjacências, 59 ocorrências de delitos, sendo 16 assaltos a pedestres.

- Existe patrulhamento de rotina, no mínimo, uma vez à noite. Quando existe algum evento, há policiamento mais presente - diz o comandante do 1º Regimento de Polícia Montada (1º RPMon), tenente-coronel Erivelto Hernandes Rodrigues.

Conforme a Superintendência de Comunicação da prefeitura de Santa Maria, a região conta com 12 câmeras em funcionamento, visualizadas em tempo real na Central de Monitoramento da Guarda Municipal (CMGM). Durante o dia, também há rondas com viaturas e luzes intermitentes ligadas. O número de agentes e os horários não foram informados, sob justificativa de atrapalhar as atividades.

A presidente da Associação de Moradores Ferroviários da Vila Belga, Myrna Floresta, 57 anos, esclarece que os equipamentos, os quais a prefeitura menciona, foram pagos pela associação. Há, ainda, outras duas particulares, totalizando 14 câmeras, além das que ficam no interior dos pátios de algumas casas. Para ela, os crimes deste ano foram atípicos:

- Historicamente, não temos problema com insegurança. E o pessoal está voltando a sentar nas calçadas e tomar um mate. O principal fato que aconteceu (assalto à equipe de TV) acabou servindo para que os moradores fossem sensíveis, contribuíssem com as mensalidades para que comprássemos as câmeras. A prefeitura não ajudou em nada, foi do nosso bolso. O que há é um compartilhamento de imagens com a Guarda e Brigada (Militar), o que, segundo eles, tem sido uma ótima troca entre a comunidade e a polícia.

A associação abrange todas as 84 casas do núcleo habitacional e conta com cerca de 400 pessoas.

EMPREENDIMENTOS NO HORIZONTE  DO NÚCLEO FERROVIÁRIO

Outra iniciativa que tem entusiasmado os moradores é a instalação da Faculdade Integrada de Santa Maria (Fisma) em um antigo prédio onde ,por anos, funcionou uma alfaiataria, no final da Rua Manoel Ribas.

Segundo Ailo Saccol, diretor da instituição, ainda não há prazos nem destino exato para o investimento. Poderá abrigar um curso de extensão, de Educação a Distância (EAD) ou mesmo um curso superior. No momento, a prioridade é a ampliação do local onde a faculdade está instalada, na esquina das ruas Ernesto Beck e José do Patrocínio. Mas, o projeto na vila ferroviária está em andamento e foi estratégico:

- Já estamos localizados na região. Aqui no lado, onde estamos ampliando, já foi uma antiga fábrica de sabão, um local de torrefação de café e um açougue. Tudo tem história. Nossa ideia sempre foi expandir para a Vila Belga, e acredito que a educação vai ser um incentivo para o desenvolvimento local.

Conforme Saccol, há cerca de três anos, o prédio foi adquirido em um leilão. Depois de dois anos, o projeto de revitalização foi aprovado.

- Demolimos uma parte necessária, estamos trabalhando na terraplanagem e saneamento. Estamos recebendo apoio do moradores e somos parceiros da associação - conta Saccol.

MERCADO PÚBLICO TROUXE VIDA NOVA
Desde junho deste ano, a instalação do Mercado Público movimentou a região. Com investimento privado de R$ 2 milhões, foi revitalizado o prédio de 1903 do espaço histórico da Estação Férrea. Para dezembro, estão previstos novos 15 empreendimentos no andar do Mercado que dá acesso para a Rua Manoel Ribas.

A vizinhança diz que a iniciativa trouxe vida nova.

- Dá mais segurança, tem gente circulando. E é preciso que invistam mais, sejam os empresários ou a prefeitura. O nosso clube (antiga Associação dos Empregados da Viação Férrea) está atirado. Criei meus filhos ali, era nosso lazer. Por que o poder público não revitaliza? Como é que o Clube 21 de Abril reergueram? - questiona a aposentada Iara Moura, 64 anos, há quase 40 na Vila Belga.

Conforme o secretário de Desenvolvimento Econômico, Turismo e Inovação, Ewerton Falk, o clube em questão é um dos imóveis do município que estão em trâmite há mais de um ano, para a mudança de uso de prédios públicos. A partir disso, será possível desenvolver atividades com sustentabilidade econômica. 

REPORTAGEM - Pâmela Rubin Matge

FOTOS - Gabriel Haesbaert e Renan Mattos

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